O que mata é a negligência

Por Márcia Martins

Um conhecido poema de Manuel Bandeira, intitulado "O Bicho", que faz uma crítica social profunda e dolorida à realidade do País na década de 40, pode ser perfeitamente usado para retratar o que acontece em Porto Alegre com a chegada do inverno. Nele, Bandeira diz que viu um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos e quando achava alguma coisa, não examinava e nem cheirava, engolia com voracidade. E conclui com a constatação: "o bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato, o bicho, meu Deus, era um homem".

Claro que, com as devidas adaptações a outro cenário, o que se vê hoje na capital gaúcha, com uma população que não tem onde dormir, sem ter o que comer e sem agasalhos para se cobrir e que cresce em ritmo acelerado, é bem semelhante ao narrado no poema de Bandeira. Parecem bichos remexendo os lixos para encontrar restos de alimentos, encolhem-se nas calçadas imundas fazendo de pedaços de papelão uma cama improvisada e, no rigor do inverno, tremem de frio. Mas não são bichos. São seres humanos. Homens, mulheres, crianças de que merecem um destino melhor.

Nesta situação de vulnerabilidade social, são seres humanos que apenas sobrevivem. Ou melhor, insistem em viver desafiando tantos obstáculos. Sem enxergar uma esperança. Sem uma promessa de luz no final do horizonte. Sem perspectiva de futuro promissor.

E no curto intervalo de 12 dias, foi registrada a morte de quatro moradores em situação de rua em Porto Alegre que não resistiram às baixas temperaturas. Morreram de frio. Isso que o inverno, pelo calendário oficial, ainda nem começou. Mas a culpa das mortes não pode ser debitada somente ao inverno. A Prefeitura não tem um olhar para estas pessoas. Logo, o que mata é a negligência.

Porque não existe na cidade uma política pública para atender os moradores de rua. Este é o fato. Não têm locais adequados para acolhimento (lembram do caso da Pousada Garoa?). E, em muitos casos, ocorre, por parte do Poder Público, a retirada de pertences, colchões, roupas e cobertores que os moradores de rua guardam debaixo de viadutos e marquises. Recentemente, vereadores denunciaram essa prática repugnante da Prefeitura em Porto Alegre.

A busca de soluções, ainda que temporárias, uma vez que é tarefa do Executivo, para os moradores de rua enfrentarem as baixas temperaturas, motivou ações de dois parlamentares nesta semana. O vereador Pedro Ruas (PSOL) realizou, na terça-feira (10), na Comissão de Defesa do Consumidor e Direitos Humanos da Câmara de Vereadores uma reunião para tratar do assunto. E a vereadora Juliana de Sousa (PT), através de seu mandato, protocolou, no mesmo dia, um ofício no Ministério Público solicitando abertura de investigação e a adoção de medidas urgentes para evitar novas mortes.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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