Trocar palavras
Por Marcelo Pires, para Coletiva.net

Você conhece o livro 'Cartas Extraordinárias' (Cia das Letras)? É sensacional. Traz correspondências inesquecíveis de pessoas notáveis. Muitas destas cartas me impressionaram - mas uma me marcou especialmente.
Em 1934, um redator de Nova York abandonou a propaganda e foi pra Hollywood - queria ser roteirista de cinema. Chegando lá, escreveu uma carta para produtores e diretores, pedindo emprego. A carta é tão boa que ele conseguiu três entrevistas - uma das quais, o cargo de roteirista-assistente na MGM. Roberto Pirosh, o remetente, com o ar dos anos, ganhou até Oscar de melhor roteiro. Tudo começou com esta carta:
"Gosto de palavras. Gosto de palavras gordas, untuosas, como logo, torpitude, glutinoso, bajulador. Gosto de palavras solenes, angulosas decrépitas, como pudico, ranzinza, pecunioso, valetudinário. Gosto de palavras espúrias, enganosas, como mortiço, liquidar, tonsura, mundana. Gosto de suaves palavras com "V", como Svengali, avesso, bravura, verve. Gosto de palavras crocantes, quebradiça, crepitantes, como estilha, croque, esbarrão, crosta. Gosto de palavras emburradas, carnudas, amuadas, como furtiva, macambúzio, escabioso, sovina. Gosto de palavras chocantes, exclamativas, enfáticas, como astuto, estafante, requintado, horrendo. Gosto de palavras elegantes, rebuscadas, como estival, peregrinação, elísio, alcíone. Gosto de palavras vermiformes, contorcidas, farinhentas, como rastejar, choramingar, guinchar, gotejar. Gosto de palavras escorregadias, risonhas, como topete, borbulhão, arroto.
Gosto mais da palavra roteirista que da palavra redator, e por isso resolvi largar meu emprego numa agência de publicidade de Nova York e tentar a sorte em Hollywood, mas, antes de dar o grande salto, fui para a Europa, onde ei um ano estudando, contemplando e perambulando.
Acabei de voltar e ainda gosto de palavras. Posso trocar algumas com o senhor?"
Ler esta carta me fez (e faz) pensar em tanta coisa. Por exemplo: "Será que é bom escrever arroto numa carta que está se pedindo emprego?". Sim, é bom: a pior coisa é ficar escrevendo apenas o razoável, exatamente o que os outros também escreveriam. Estranheza acorda o leitor.
Outro exemplo de reflexão que a carta me traz: a importância de Roberto informar que ou um ano estudando, contemplando e perambulando na Europa. Quem viaja na vida, viaja melhor nas ideias - saco vazio não pára em pé.
Sou redator publicitário desde 1985 (se me lembro bem). Acho que as palavras nunca foram tão maltratadas no dia a dia. Explico: a propaganda na internet - programática, imagética - está produzindo toneladas de péssimos textos. Os briefings estão sendo publicados ipsis litteris. A "veracidade" e a "informalidade" das redes servem de desculpa para se publicar qualquer coisa. Há quase um cancelamento do texto mais elaborado. Elaborado, não esqueçam, não quer dizer difícil, pernóstico. Quer dizer aprimorado. Estruturado. Caprichoso.
Estamos precisando recuperar a qualidade dos textos, a importância dos redatores. Grupos pensam bem - mas escrevem mal. Escrever, sim, todo mundo escreve. Escrever bem exige talento específico. Acredite: não basta botar um "né?" no fim de cada frase e dizer que o texto ficou "próximo" e "casual". Geralmente, quem pensa assim escreve casual com "z".
Está mais do que na hora de nós, que trabalhamos com marketing, com comunicação, com conteúdo, deixar de acreditar que as pessoas, hoje em dia, não lêem textos.
É só texto ser bom - como esta carta de Roberto Pirosh - que as pessoas lêem, sim. Se você quer trocar ideias com seu consumidor, não troque tanto as palavras que um bom redator escreve.
Marcelo Pires é publicitário, consultor e roteirista. O Silva da Ideia da Silva.