Não mate o mensageiro

Por Geórgia Santos, para o Coletiva.net

Geórgia Santos - Arquivo Pessoal

Jornalismo é daquelas profissões que todo mundo - que não é jornalista - acha que faz melhor. E quem exerce diante da opinião pública, em tempo real, ao vivo, fica ainda mais vulnerável às "críticas construtivas". Mesmo em um Twitter da vida, sempre tem alguém pra dizer que a gente não sabe fazer o nosso trabalho, e durante as sabatinas dos candidatos à presidência da República no Jornal Nacional, da Rede Globo, esse traço da audiência ficou bem evidente. De acordo com muitos dos usuários das redes sociais, qualquer pessoa teria feito uma entrevista melhor que William Bonner e Renata Vasconcelos. Qualquer pessoa. Humoristas, jogadores de futebol, padeiros. Qualquer pessoa teria lembrado de perguntar sobre cheques da primeira-dama, laranjas, Orçamento Secreto e rachadinhas. Eu confesso que também engrossei as fileiras dos descontentes e critiquei os entrevistadores: faltou perguntar sobre a fome que assola milhões de brasileiros a olhos vistos.

Mas isso faz parte. Dentro do limite civilizatório, críticas são importantes e até necessárias. Os jornalistas não estão acima do bem e do mal e é importante que sejam cobrados e responsabilizados pelo que comunicam. É claro que talvez caiba uma reflexão sobre o que se espera dos jornalistas, porque muitas vezes as críticas partem de um lugar que entende que os entrevistadores devem assumir uma postura ostensiva a favor ou contra determinado candidato. Mas, de maneira geral, é importante que os jornalistas sejam cobrados pelo público. Até porque, é uma função fundamental para a manutenção da democracia e isso, por si, é de uma responsabilidade imensa. O problema é quando isso vira violência.

O problema é quando jornalistas am a ser perseguidos e acossados porque têm a coragem de trazer à luz o que poderosos preferiam que ficasse nas sombras. Porque tem a coragem de denunciar ou até mesmo de perguntar. O problema é quando a autoridade máxima da República resolve encarnar uma alegoria de Dario III, Imperador da Pérsia que decidiu matar o mensageiro que deu a notícia de que Alexandre, o Grande havia derrotado seu exército.

O Brasil está, hoje, entre os dez países com o pior índice de liberdade de imprensa na América Latina e Caribe e é um dos países mais perigosos do mundo para jornalistas. Não esqueçamos que na semana em que se celebrou o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, que é comemorado no dia 7 de junho, os brasileiros foram surpreendidos com a notícia do desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira. Os dois foram assassinados na Amazônia. No Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa elaborado pela Repórteres Sem Fronteiras (RsF) neste ano, o nosso país ocupa o 110º lugar de uma lista de 180 países. Entre 2015 e 2022, o índice de Liberdade de Imprensa por aqui caiu de 68.79 para 55.36.

Além desse ranking, outros levantamentos indicam que a desconfiança em relação à imprensa ganhou terreno no Brasil e está sendo alimentada por uma "retórica anti mídia" de determinados grupos políticos. E os ataques cada vez mais visíveis e virulentos têm consequências graves como assédio online contra jornalistas e campanhas de difamação e intimidação, principalmente contra mulheres. Levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que somente em 2022 já foram registradas 55 agressões com viés de gênero contra jornalistas. Quase metade dos casos (47%) é formada por ataques à reputação e à moral, usando a aparência, a sexualidade ou estereótipos misóginos para ofender as mulheres. Não surpreende que em 43% das agressões monitoradas pela Abraji a jornalista cubra temas políticos.

O exemplo mais recente aconteceu diante dos olhos do público, no último domingo (28),  durante o debate dos candidatos à presidência promovido por Band, TV Cultura, Folha de S.Paulo e UOL. A jornalista Vera Magalhães, colunista do jornal O Globo e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura, questionou Ciro Gomes (PDT) sobre a desinformação acerca das vacinas contra a Covid-19 e o impacto que as mentiras produzidas inclusive pelo presidente da República podem ter causado no processo de vacinação. Cabia a Jair Bolsonaro (PL) comentar a resposta de Ciro, mas ele preferiu insultar a jornalista, que formulou uma pergunta pautada em fatos.

"Vera, não pude esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro", disse Bolsonaro, entre outros ataques. Mas ela não fez "acusações mentirosas". Bolsonaro disse que as vacinas da China não transmitiam segurança pela origem, que ele não precisaria se vacinar porque já tinha sido contaminado, afirmou que "tem idiota" que pede mais vacinas, também disse que não tinha que procurar fabricantes, não esquecendo da brincadeira de mau gosto de que todos viraríamos jacaré, insinuando que as vacinas não eram seguras, entre outras tantas coisas. Então, não era mentira. Mas ele preferiu atacar a mensageira em sua fantasia de Dario III.

De novo, o problema não é a crítica, que é importante para que uma sociedade democrática se fortaleça com uma imprensa livre. Afinal, jornalistas também erram. Mas isso não é crítica, é ataque, é violência e esse comportamento não pode ser normalizado. A culpa não é do portador da notícia. Tem um antigo provérbio latino que diz: "Ne nuntium necare". Ou seja, não mate o mensageiro.

 

Geórgia Santos é jornalista, cientista política e editora-executiva do Vós

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