Do Palácio de Buckingham às praças de Sucupira!
Por Christian Müller Jung, para Coletiva.net

"É preciso que as coisas mudem para que elas permaneçam."
Assim respondeu a Rainha Elizabeth II, quando o jornalista perguntou a respeito dos seus 70 anos de reinado.
"Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi."
Na verdade, ela fazia uma referência à frase original, que pertence à obra de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e está impressa no livro 'Il Gattopardo (O Leopardo)', publicado em 1958, sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento. Ganhou fama e as telas de cinema cinco anos depois, em filme assinado por Luchino Visconti e com Alain Delon no papel de Tancredi - descrito como arruinado e simpático oportunista 'Príncipe de Falconeri'. Perante a possibilidade de mudança, a aristocracia resolve pactuar com a burguesia para a sobrevivência de ambas, e Tancredi anuncia ao tio, Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, que se unirá aos revoltosos e ,na tentativa de convertê-lo, imortaliza o ensinamento:
"Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude."
A frase me veio à mente quando da morte da Rainha Elizabeth II que, aos 96 anos de vida e 70 de reinado, manteve-se respeitada e a mais atual que as regras da monarquia permitiam. A Rainha foi capaz de sobreviver, nessas sete décadas que manteve a coroa, com sua imagem icônica, dentre outros fatores, por ter sabido se adaptar ao tempo, ter mudado para que tudo permanecesse igual.
Inspiro-me na lição de Lampedusa e na rigidez de padrões que pauta o reinado, para convidar você a pensar sobre a necessidade de adaptação da prática protocolar nos tempos atuais, destacando não apenas os papeis de Mestre de Cerimônias e cerimonialista - com os quais tenho intimidade profissional -, mas refletindo, também, sobre até que ponto a liturgia do cargo das autoridades deve se moldar às novas realidades.
amos, necessariamente, por uma atualização na forma de executar os eventos, devido ao momento pandêmico. Regime de exceção, é lógico. Foram praticamente dois anos de desespero pelas faltas de trabalho e contato interpessoal. Tempo que nos desafiou a continuar. A transmissão via internet foi o que possibilitou a realização de uma demanda de eventos e, de lá pra cá, a modalidade foi incorporada tornando-os híbridos e ampliando a participação do público.
Mesmo na minha área de atuação, a de Cerimonial Público, as transmissões online se fizeram presentes e os canais das redes sociais entraram nos endereços dos, até então, "imexíveis" convites oficiais do Governo. Foi um aprendizado à força, com acontecimentos senão constrangedores, por vezes engraçados - mas isso fica para outra conversa. Fiquemos com os protocolos!
A rigidez dos padrões têm cedido à nova dinâmica do cotidiano. A rapidez da evolução tecnológica nos empurra para isso. Um dos questionamentos é quanto à interminável lista do "Prestigiam", que costuma abrir os eventos ou os "Vocativos" das autoridades. Talvez o espaço para a leitura dessa lista de nomes e cargos pudesse ser ocupado por citações mais genéricas, focando no discurso, no conteúdo da fala.
Precisamos entender que o vocativo, mesmo que pareça entediante em determinados momentos, dignifica o evento, que tem sua importância expressa pela presença dos representantes de outros poderes, instituições e da sociedade civil. Não é, portanto, tão somente uma leitura de nomes e cargos. Ainda assim, temos percebido que parcela das pessoas gosta de algo mais informal e com menos pronomes de tratamento. Preferindo um "papo reto" - como se diz na gíria.
Há quem defenda que se substitua o formato tradicional das cerimônias, inclusive as públicas, por cenários e roteiros que lembrem programas de televisão, com a ideia de descontrair o ambiente. Nos cerimoniais e, em especial, no cerimonial público, essa liberalidade pode gerar conflitos ou revelar a insensibilidade dos organizadores. Ao transformar o protocolar em programa de auditório corre-se o risco de se desprestigiar os demais poderes que participam do evento. E como você sabe, todo mundo quer "aparecer na foto". Dar destaque e seguir a precedência é a forma com que se construiu uma sociedade, que levou tempo para se organizar.
Isso não significa que mudanças não devam ser realizadas, nem que tenham deixado de acontecer, especialmente do ponto de vista tecnológico. Os equipamentos estão muito mais avançados. Microfones têm cápsulas mais sensíveis, amplificadores mais potentes, dando voz até mesmo a quem não tem um padrão adequado para se pronunciar. Os registros e transmissões de fotos e vídeos são imediatos, feitos em celulares e não dando chance de se editar os erros.
Essas transformações moldam gerações. Vamos lembrar das belas e potentes vozes que marcaram o início da 'Era do Rádio'. Naquela época, os cantores se apresentavam ao vivo, ao lado das orquestras e dentro de estúdios. Os microfones e equipamentos não eram tão modernos e sensíveis como os de hoje. Se o cantor ou cantora não tivesse uma voz potente, ninguém os escutaria - a carreira acabava ali mesmo. Os locutores, da mesma forma. Todos com a conhecida "Voz de Peito".
Voltemos a nos inspirar na Rainha para refletir sobre o cerimonial dos novos tempos. O que teria mudado em seus 70 anos de coroa para que permanecesse uma liderança? É certo que da missa não se sabe um terço, mas é bem provável que o "discurso". Sim, o discurso se adaptou ao tempo dos smartphones. O conteúdo também, ao tratar de questões mais relevantes para o desenvolvimento das nações. A imagem da Rainha se transformou: sempre alinhada, moderna ao estilo de uma senhora, sem ficar com a imagem do ranço da corte, mas da elegância que ela nos ensina. Se manteve mulher nesse mundo onde sabemos que elas ainda têm muito para lutar. Ainda mais nessas terras Tupiniquins.
Por falar em Brasil, não devemos esquecer de nossas peculiaridades. Ao mesmo tempo em que assistimos aos eventos em formato de arena, com telões digitais ao centro, aproximando-nos de personalidades mundiais em tempo real, até mesmo com o uso de holografia, metaverso e as mais avançadas tecnologias, ainda fazemos inaugurações de trechos asfálticos, trevos de o e portais de cidades com tribunas emprestadas de câmaras de vereadores, em palcos de madeira ou aboletados na caçamba de caminhões, com dezenas de autoridades amontoadas e se equilibrando para aparecer na primeira página da próxima edição do jornal local.
Do Palácio de Buckingham às praças de Sucupira, de tudo ainda temos um pouco.
Christian Jung é publicitário, locutor e mestre de cerimônias.